Durante a Quaresma, muitas vezes a Igreja cantou: “Misericórdia, Senhor, Misericórdia! Senhor, escuta o lamento e tem de nós compaixão, ao povo dá novo alento, a tua graça e perdão”. De repente, à luz da Páscoa, a Misericórdia virou festa! Continuamos limitados e pecadores, mas com a certeza de que a Ressurreição de Jesus nos trouxe vida nova, o perdão e a reconciliação. No tempo em que vivemos, quaresma terminada e quarentena continuada, é preciso lançar a luz da Páscoa de Cristo sobre as realidades pessoais e sociais, elevadas a condições planetárias, quando as forças da sociedade se despertam, para encontrar soluções, chamem-se elas respiradores, medicamentos, vacinas, cuidados imediatos ou paliativos. Tudo começa a respirar um clima novo, chamado solidariedade! Parece que o mundo acorda de um sono, infelizmente longo, feito de individualismo, interesses do ganho e do lucro, busca insaciável do prazer e daí por diante. A nós cristãos caberá testemunhar o plano de Deus, com o qual tudo pode concorrer para o bem dos que o amam.
O Catecismo da Igreja Católica (Números 1 a 3) começa com algumas palavras da Escritura que podem indicar-nos o caminho: “Esta é a vida eterna: que conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que enviaste” (Jo 17, 3); “Deus quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2, 3-4); “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado à humanidade pelo qual devamos ser salvos”(At 4, 12), senão o nome de Jesus. Diz o Catecismo que “Deus, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para torná-lo participante da sua vida bem-aventurada. Sempre e em toda a parte, ele está próximo do homem. Chama-o e ajuda-o a procurá-lo, a conhecê-lo e a amá-lo com todas as suas forças. Convoca todos os homens, dispersos pelo pecado, para a unidade da sua família que é a Igreja. Para tal, enviou o seu Filho como Redentor e Salvador na plenitude dos tempos. Nele e por ele, chama os homens a se tornarem, no Espírito Santo, seus filhos adotivos e herdeiros da sua vida bem-aventurada. Aqueles que, com a ajuda de Deus, aceitaram o convite de Cristo e livremente lhe responderam, são impelidos, pelo amor do mesmo Cristo, a anunciar por toda a parte a Boa Nova. Todos os fiéis de Cristo são chamados a transmiti-lo, anunciando a fé, vivendo-a em partilha fraterna e celebrando-a na liturgia e na oração” (Cf. Catecismo, números 2 e 3). Fomos feitos para glorificar a Deus, para ser felizes e para transmitir aos outros a vida que vem de Deus! Ninguém está destinado a perder-se ou ser infeliz!
A certeza de que somos chamados a ser felizes e realizados nos faz portadores do plano de Deus. E podemos ver como São Paulo viu este plano: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação. Ele nos consola em todas as nossas aflições, para que, com a consolação que nós mesmos recebemos de Deus, possamos consolar os que se acham em toda e qualquer aflição. Pois, à medida que os sofrimentos de Cristo crescem para nós, cresce também a nossa consolação por Cristo’ (2 Cor 1, 3-5). O Pai das Misericórdias quer consolar, em Jesus Cristo, todas as pessoas, alcançando todas as situações humanas. De uma forma ou de outra, nos dias de crise que vivemos, haveremos de encontrar caminhos para que a bondade de Deus passe pelas Igrejas domésticas de nossas famílias, entre nos Hospitais de Campanha, suscite a fraternidade e a partilha.
Há uma mística a ser oferecida, a fim de fortalecer-nos: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso”. O apelo de São Lucas (6, 36), o escriba da mansidão de Cristo, como o definiu Dante Alighieri, é um emblema da moral evangélica, que tem no amor o seu coração. A lei divina da misericórdia, “a mais importante e talvez a única lei da vida da humanidade inteira”, como a definia o grande escritor russo Dostoevskij. O verdadeiro retrato de Deus é aquele autobiográfico que é proclamado no Sinai e que foi considerado como a “carteira de identidade” de Deus: “O Senhor, o Senhor, Deus misericordioso e compassivo, lento para a ira e rico de amor e fidelidade, que conserva o seu amor por mil gerações, que perdoa a culpa, a transgressão e o pecado, mas que não deixa sem punição, que castiga a culpa dos pais e dos filhos até à terceira e quarta geração” (Ex 34, 6-7). Como é evidente, a justiça divina não é cancelada, antes é perfeita: três e quatro fazem sete, número bíblico da perfeição. Todavia, o perdão e a misericórdia que têm como cifra simbólica o mil, isto é, o infinito, são ilimitados” (Cf. Cardeal Gianfranco Ravasi, Retiro dos Bispos em Aparecida-SP, 2016).
Nasça em nosso coração uma verdadeira paixão pelas situações mais desafiadoras e difíceis. Cada pessoa poderá encontrar o seu campo de misericórdia para agir. Médicos e outros profissionais de saúde, e são tantos os exemplos recentes de verdadeira imolação, desdobrem-se em misericórdia sobre os doentes. Cientistas terão em laboratórios de pesquisa seu campo de misericórdia. Misericórdia será a acolhida às parcelas mais carentes da sociedade, especialmente as populações de rua. Misericórdia têm sido as muitas campanhas por cestas básicas para quem chega a passar fome. Misericórdia será a responsabilidade social de quem obedece a todas as normas estabelecidas pelas autoridades. Misericordioso será o que usa máscaras, ou que lava as mãos com frequência. Misericórdia será superar os gastos supérfluos, sendo mais pobres de bens e mais ricos de caridade. Misericórdia será nossa capacidade de vencer o orgulho de uma pretensa onipotência. Vejamos o que constatou Frei Raniero Cantalamessa, na Homilia da Sexta-feira Santa: “A pandemia de corona vírus nos despertou bruscamente do perigo maior que sempre correram os indivíduos e a humanidade, o do delírio de onipotência. Bastou o menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para nos recordar que somos mortais, que o poderio militar e a tecnologia não bastam para nos salvar. “Não dura muito o homem rico e poderoso: – diz um salmo da Bíblia – é semelhante ao gado gordo que se abate” (Sl 49, 21). E é verdade!”.
Enfim, Misericórdia é a criatividade de nossas Paróquias, o zelo de nossos sacerdotes, o perdão espalhado no Sacramento da Penitência, as celebrações transmitidas pelos meios de comunicação. Os meios aparentemente limitados são revestidos do manto da misericórdia e trazem a paz, aquela que o Ressuscitado anunciou, mostrando suas chagas gloriosas: “‘A paz esteja convosco. Mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos, então, se alegraram por verem o Senhor. ‘Como o Pai me enviou também eu vos envio’. Então, soprou sobre eles e falou: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, lhes serão retidos’” (Cf. Jo 20,19-23).
Presidente da Fundação Nazaré de Comunicação, também é apresentador de programas na TV e Rádio e articulista de diversos meios impressos e on-line, autor da publicação anual do Retiro Popular.
Enquanto Padre exerceu seu ministério na Arquidiocese de Belo Horizonte – MG: Reitor do Seminário, Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pároco em várias Paróquias, Vigário Forâneo, Vigário Episcopal para a Pastoral e Capelão de Hospital.
Foi Bispo Auxiliar de Brasília, membro da Comissão Episcopal de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal Latino – Americano – CELAM. Tomou posse como primeiro Arcebispo Metropolitano de Palmas – TO. Atualmente o 10º Arcebispo Metropolitano de Belém.