O Evangelho de São Mateus (Mt 18, 1-35) oferece um magnífico roteiro para a vida em comunidade, no qual o lugar a ser reconhecido aos pequeninos, a superação do escândalo, a oração em comum, o exercício do ministério do perdão e a presença do próprio Jesus no meio daqueles que se reúnem em seu nome oferecem as coordenadas para a vida de Igreja em todos os tempos. Um detalhe mereceu do evangelista atenção especial, para revelar as entranhas de compaixão do coração de Deus, a serem manifestadas no dia a dia dos cristãos, e é o perdão a ser oferecido reciprocamente.
Uma música popular brasileira canta assim: “Eu voltei pra me humilhar, mas não faz mal, você pode até sorrir! Perdão foi feito pra gente pedir!” O perdão começa com a falta, o pecado, a miséria do outro, começa no negativo! É até interessante pensar que no Sacramento da Reconciliação, só pode existir absolvição se houver pecado! Ele é matéria de um Sacramento! Na convivência diária, perdão é feito para ser pedido e ser doado com coração generoso! Entretanto, se penetrarmos no mais profundo desse gesto tantas vezes exigente e mesmo difícil, será necessário olhar para o alto e descobrir que só lá dentro do coração de Deus pode nascer o perdão!
Deus é perdão, compaixão, misericórdia. A experiência de Moisés diante de Deus é magnífica: “O Senhor desceu na nuvem e permaneceu com Moisés, e ele invocou o nome do Senhor. E o Senhor passava diante dele. E ele exclamou: ‘O Senhor, o Senhor, Deus misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel, que conserva a misericórdia por mil gerações e perdoa culpas, rebeldias e pecados, mas não deixa nada impune, castigando a culpa dos pais nos filhos e netos, até a terceira e quarta geração’. Imediatamente, Moisés curvou-se até o chão e prostrou-se em adoração. Depois disse: ‘Senhor, se é verdade que gozo do teu favor, então caminhe meu Senhor no meio de nós, pois esse é um povo de cabeça dura. Perdoa nossas culpas e nossos pecados e acolhe-nos como propriedade tua’” (Ex 34, 5-9). E toda a história da salvação nos mostra as idas e vindas de um povo de cabeça dura, amado por Deus! Misericórdia pedida, misericórdia concedida, e isso, setenta vezes sete vezes (Cf. Mt 18, 22), como o Filho de Deus propõe a todos nós!
Para retratar o que o Evangelho propõe, é bom pensar que o devedor da parábola contada por Jesus devia uma enorme fortuna, suficiente para o salário de um empregado por centenas de anos. O patrão da parábola é a revelação daquele que é mais pai do que patrão, sentiu compaixão, expressão usada na Bíblia para mostrar a misericórdia de Deus. A dívida do companheiro de trabalho era pífia em relação com a fortuna a ser paga por aquele que recebeu e não soube oferecer misericórdia. Entretanto, se Deus não se cansa de perdoar, como ensina o Papa Francisco, nós é que nos cansamos de pedir a sua misericórdia, e não nos abrimos para transmitir o perdão tantas vezes recebido às pessoas que nos ofendem. Na oração do Pai Nosso, nós mesmos nos comprometemos, pedindo que ele nos perdoe “assim como nós perdoamos”! Estaríamos perdidos se Deus se limitasse a perdoar-nos nessa medida!
Se o perdão vem de Deus, sabemos com que arte ele nos criou e com que poesia nos oferece as raias da misericórdia, compassivo com aqueles que caem! Dele aprenderemos tal arte! Podemos começar com uma balança, colocando num de seus pratos a pessoa que nos ofendeu e no outro as falhas cometidas. Para Deus e para quem quer perdoar, como faz o Senhor, a pessoa tem mais valor do que o erro cometido! A lógica do perdão é a arte do carinho com o qual Deus olha para nós. Nenhuma falha ou pecado poderão apagar o selo de amor com o qual fomos criados!
Para perdoarmos uns aos outros, é preciso olhar primeiro para o alto, contemplar o coração de Deus! Depois, olhar para dentro, pois fomos feitos por ele, e em sua obra prima estão as entranhas de misericórdia, postas dentro de nós. Lá dentro, não fomos feitos para odiar, e o ódio ou o desprezo dos outros são tão contraditórios com a obra de Deus que nos fazem absolutamente infelizes! Há que fazer uma opção de princípio em nossa existência, de nunca querer demolir ou destruir quem quer que seja. Olhar as outras pessoas sempre e permanentemente como candidatas à vida e à amizade, mesmo quando nos parecem irrecuperáveis! Já seria um passo imenso apenas não querer destruir os outros!
No Sermão da Montanha (Cf. Mt 5, 23-26), o Senhor propõe que o primeiro passo seja dado sempre “por mim”. É necessário desenvolver em nós a sensibilidade apurada para identificar o sentimento existente no coração do outro, e ver se ele tem algo contra mim! Se o perdão é uma arte, é preciso ter esta sintonia fina, carregada de sensibilidade, para ver o que é possível fazer para aproximar-nos dos outros. Pode-se começar com a superação dos julgamentos, e necessariamente entrará em cena a oração pela pessoa eventualmente ofendida. Pode até acontecer que a virtude da paciência exigirá a espera do momento adequado para aproximar-nos da pessoa com a qual se estabeleceram bloqueios que parecem insuperáveis.
Do jeito certo e no momento adequado, deveremos ouvir o Senhor dizendo: “O Senhor te guiará todos os dias e vai satisfazer teu apetite, até no meio do deserto. Ele dará a teu corpo nova vida, e serás um jardim bem irrigado, mina d’água que nunca para de correr. E a tua gente reconstruirá as ruínas que pareciam eternas, farás subir os alicerces que atravessaram gerações, serás chamado reparador de brechas, restaurador de caminhos, para que lá se possa morar” (Is 58, 11-12). Dar o primeiro passo, recomeçar o relacionamento com os outros, retomar os afetos, dizer com a vida que a pessoa é mais importante do que suas falhas ou pecados!
O Pedro que fez a pergunta a Jesus sobre o perdão, diante da beleza da pesca milagrosa (Cf. Lc 5, 1-11), nem conseguia admirá-la. Quis afastar-se, como pecador, do artista das águas e da vida. Foi então que o pecador foi transformado em “pescador de homens”. A arte do perdão será um caminho para que mais gente, em nosso mundo tão machucado, entre na barca da Igreja!
Presidente da Fundação Nazaré de Comunicação, também é apresentador de programas na TV e Rádio e articulista de diversos meios impressos e on-line, autor da publicação anual do Retiro Popular.
Enquanto Padre exerceu seu ministério na Arquidiocese de Belo Horizonte – MG: Reitor do Seminário, Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pároco em várias Paróquias, Vigário Forâneo, Vigário Episcopal para a Pastoral e Capelão de Hospital.
Foi Bispo Auxiliar de Brasília, membro da Comissão Episcopal de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal Latino – Americano – CELAM. Tomou posse como primeiro Arcebispo Metropolitano de Palmas – TO. Atualmente o 10º Arcebispo Metropolitano de Belém.