No Concílio Vaticano II, a Igreja delegou aos pastores e teólogos a missão de discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, afim de julgá-las à luz da palavra de Deus, para que a verdade revelada seja melhor compreendida e apresentada (cf. Gaudium et Spes, 44). Assumindo essa missão, proponho-me a falar da Virgem Maria, partindo de um conto de fadas: a Cinderela.
Por favor, não pense que minha atitude seja original. Na verdade, parto do pensamento do jornalista e ensaísta inglês o Servo de Deus Gilbert Keith Chesterton que, no capítulo “A Ética da Terra dos Elfos” do seu livro “Ortodoxia”, escreve as breves palavras: “temos a lição da Cinderela, que é a mesma do Magníficat: exaltavit humiles”. (CHESTERTON, 2013, p. 80). De fato, mesmo que pareça pitoresco, a “exaltação dos humildes” que a Virgem Maria canta em Lucas capítulo 1, versículos 46-55, é encontrada no conto de fadas.
A Virgem Maria, tal como a gata borralheira, não possuía exteriormente nada que pudesse fazer dela uma rainha, muito menos Rainha dos Céus, como a aclamamos no tempo pascal. São as suas virtudes interiores, sua humildade e seu dom de serviço que encantam ao Senhor que “viu a pequenez de sua serva” (Lc 1, 48). A Gata Borralheira é visitada pela Fada Madrinha, que podemos comparar de modo alegórico não com o Arcanjo Gabriel, mas com o Espírito Santo. Este é responsável por elevar exteriormente aquela que interiormente já era grande, tornando-a Mãe de Deus. Os humildes foram elevados, porque realizou nela maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo (cf. Lc 1, 49).
Com o evento Pascal e posteriormente a Assunção da Virgem Maria e sua coroação como Rainha dos Céus, parecia que se findava o seu papel no plano da salvação e que ela já haveria cumprido sua missão. Nesta alegoria da Cinderela, seria quando nosso relógio bate meia-noite. Contudo, para nossa grande alegria, a Mãe de Deus “esqueceu” seu sapatinho de cristal.
Em Pentecostes, a Virgem Maria implorava com suas orações para que os Apóstolos recebessem o mesmo Espírito que já havia descido sobre ela. (cf. Lumen Gentium, 59). E hoje, a Virgem Maria reza junto a Deus, para que as graças que um dia ela recebeu sejam derramadas em nós. “Por isso, Maria tornou-se a primeira entre aqueles que, ‘servindo a Cristo também nos outros, conduzem os seus irmãos, com humildade e paciência, àquele Rei, servir ao qual é reinar’; e alcançou plenamente aquele ‘estado de liberdade real’ que é próprio dos discípulos de Cristo: servir quer dizer reinar!” (Redemptoris Mater, 41). São João Paulo II diz que ela foi a primeira, não a única, pois o que se realizou nela, o Pai deseja realizar em nós.
Como o príncipe da Cinderela percorreu todo o seu reino com o sapatinho de cristal nas mãos, procurando os pequenos pés caibam no sapatinho. Assim também hoje, o Pai procura em toda a terra as pequenas almas, configuradas com a humildade da Virgem Maria, para nelas derramar as graças que já foram derramadas em Maria, para assim, continuar construindo a Igreja.
O Concílio Vaticano II nos diz: “[…] Na Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria, os fiéis ainda têm de trabalhar por vencer o pecado e crescer na santidade; e por isso levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a família dos eleitos. […] Por sua parte, a Igreja, procurando a glória de Cristo, torna-se mais semelhante àquela que é seu tipo e sublime figura, progredindo continuamente na fé, na esperança e na caridade, e buscando e fazendo em tudo a vontade divina. […]” (Lumen Gentium 65). Do alto dos céus, a Santíssima Virgem continua preparando nossas almas para caberem dentro do sapatinho de cristal. Ela nos enriquece com a pobreza de Cristo (cf. II Cor 8, 9), distribui sobre nós sua Fé, suas virtudes, sua humildade e as graças de Deus.
Como a gata borralheira jamais pensara que um dia seria rainha. Assim nós, na labuta e nos afazeres do nosso dia a dia, muitas vezes não reconhecemos o chamado de Deus e a grandeza de nossa vocação para um dia reinarmos com Ele pelos séculos dos séculos (cf. Ap 20, 5). Contudo, é a graça de Deus que irrompem em nossa história e nos chama. E diante do mesmo Deus que chamou a Santíssima Virgem, podemos com a sua Graça dizer nosso sim, em continuidade com todos os sins que vieram antes de nós nessa grande obra da construção da Igreja.
Por isso, rezemos, pedindo para a Santíssima Virgem a sua a humildade, as suas virtudes e a sua fé, que um dia encontraram graça diante de Deus (cf Lc 1, 30). Dessa maneira, a Igreja continua sendo construída em nós, em semelhança a Virgem Maria, Mãe da Igreja, onde a obra de Deus já foi concluída.
Referencias:
CHERTERTON, G.K. Ortodoxia. Tradução Ives Gandra da Silva Martins Filho. Campinas: Ecclesiae, 2013.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Sobre a Igreja. Disponível em:
https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html. Acesso em 26 abr. 2021.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Sobre a Igreja no Mundo Actual. Disponível em:
http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em 26 abr. 2021.
SÃO JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Redemptoris Mater. Disponível em:
http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031987_redemptoris-mater.html. Acesso em 26 abr. 2021.
Seminarista Augusto Bozani Müller
Missionário da Comunidade Mensageiros da Boa Nova
Bacharel em Teologia (Faculdade Católica de Belém)