O “jubileu”, ou ano jubilar, é mencionado várias vezes no Antigo Testamento. O texto básico é Levítico 25,8-22 e 27,6-25.
Em primeiro lugar, no contexto geral, o livro do levitico é o 3º livro do Pentateuco. O Pentateuco, ou Torá, o “ensinamento”, é a descrição programática da grande assembléia constitutiva da comunidade do povo de Deus. É uma assembleia porque dá conta da experiência histórica de Israel, que é válida também para o resto da história de Israel; é, portanto,constitutiva a antiga formação do povo como comunidade autêntica vincula a formação que ainda deverá realizar-se.
O Levítico ocupa um lugar singular. É um documento muito complexo, resultado de décadas de trabalho, exílio e pós-exílio (portanto: séculos 6º e 5º a. C) da escola teológica chamada “sacerdotal” e identificada com a sigla P. Esta fonte coleta e codifica memórias históricas, teológicas e jurídicas, muitas vezes de uma antiguidade impressionante como será para o texto do jubileu. A Escola P (sacerdotal) concebe tudo isso como uma enorme descrição da história da salvação, dentro da qual o momento constitutivo, motivador, nodal e caracterizador é o culto litúrgico. Assim, é precisamente a vida “social” que recebe sua sanção e sua homologação do culto: do culto derivam obrigações sociais muito estritas e inevitáveis, que são de justiça-caridade, não uma sem a outra. A única motivação é sempre: “Vós fazeis algo, porque eu sou o Senhor, seu Deus…… porque eu sou o Santo” (motivo recorrente, por exemplo, em Levítico 19). A expressão “Senhor teu Deus” é o nome pelo qual o Senhor, JHVH, revelou-se a Moisés no Sinai, e libertou Israel do Egito, fazendo-os viver o “fato pascal”. Uma vez que Israel vive este facto histórico através das gerações, a obrigação última da justiça-caridade é sempre a mesma: ter vivido a Páscoa em comunidade diante do Senhor.
O texto sobre o Jubileu faz parte do chamado “Código de Santidade”, ou seja, os capítulos de Levítico 16-26. É a parte mais antiga do livro, e inclui vários ensinamentos legislativos, que é o conteúdo vital da aliança, o comportamento para com o Senhor e o próximo. Só obedecendo a estes preceitos um povo de «purificados», poderá viver uma história real e salvífica diante do seu Senhor, «o Santo» por definição. A parte social das prescrições se forma como a medula do complexo literário.
O contexto imediato do Jubileu é precisamente litúrgico e social: os capítulos 23-24 do Levitico referem-se às festas do povo; os capítulos 25-27, numa visão grandiosa, referem-se à verdadeira sociabilidade desta comunidade histórica. Em particular, o texto de Levítico 25,1-7, o ano sabático; 8-22, o Jubileu; 23-34, o resgate de pessoas; 35-55, escravidão e libertação; 26, 1-2, contra a idolatria; 3-13, bênçãos para aqueles que obedecem às prescrições; 14-45, maldições contra os transgressores; 27, 1-8, votos a serem comutados porque são muito onerosos; 9-13, votos para os animais; 14-15, votos para a própria casa; 16-25, votos para os campos; 26-27, resgate dos primogênitos dos animais; 28-29, consagração de bens ao Senhor; 30-33, dízimos sagrados ao Senhor – porque devem ser distribuídos àqueles que precisam deles.
- A prescrição
O texto de Lv 25, 8-22 prescreve uma medida social e religiosa que deve ser aplicada a cada 49 anos, ou seja, a cada 7 anos sabáticos (v. 8): os campos retornarão aos seus antigos donos, os escravos retornarão livres para a família (v. 10). Durante este período anual extraordinário não há semeadura nem trabalho: o próprio Senhor proverá e todos comerão (v. 11-13 e 20-22).
Cada aquisição, tanto de campos como de escravos deverá levar em consideração o ano jubilar, tanto que os preços devam levar em consideração o ano da remissão (v. 18-19).
- O significado
O próprio nome do Jubileu, hebraico jobel, significa chifre, e por tradução é o chifre de carneiro que foi tocado para anunciar a celebração do “Jubileu” (cf. Lv.25, 13.28.40.50.52.54.). O chifre também é tocado para anunciar as festas principais do ano liturgico e social hebraico.
Neste caso, se tocava no dia 10 de Tishri, o 7º mês (por volta de setembro-outubro do nosso calendário), que era o dia do Kippur ou Expiação (cf. Levítico 16). Um som litúrgico e festivo, um grande rito de penitência e de purificação de toda a comunidade dava, portanto, não só o início, mas o motivo e a caracterização de todo o compromisso social do Jubileu: o retorno universal à liberdade primitiva das pessoas e do património. O que isso significa?
No Antigo Testamento, em geral, na Torá em particular, a universalidade de tudo o que existe, do cosmos à vida humana, pertence apenas a Deus. O homem pertence a Deus, mas Deus faz com que o homem pertença a si mesmo e ao próximo – uma moral “individual” na Bíblia, no Antigo e no Novo Testamento, é inconcebível: o irmão vive para si mesmo e para o irmão; O individualismo, sempre bestial, é derrotado para sempre, o homem deve reconhecer o “outro”, o irmão.
A terra pertence também ao Senhor; o seu próprio povo na terra prometida deve considerar-se simplesmente como hóspedes, dependendo da sua fidelidade ao Senhor da promessa, que, como deu a terra, pode retomála.
Em Israel, ninguém pode comprar propriedades para sempre. A prescrição jubilar é ditada sem rodeios: é comprada por apenas 49 anos, ou pelo menos, em vista do próximo Jubileu. O uso da terra é, portanto, adquirido, limitado aos prazos do Jubileu.
Não só isso: o “escravo” não poderia ser comprado para sempre. Além de outras regras, muito amplas e claras, para a redenção pelo sujeito e para a libertação pelo mestre (cf. textos preciosos como Dt. 15:12-18, para ser cuidadosamente relido com Filêmom, a lei prescrevia que o devedor poderia vender não sua pessoa, mas seus serviços, sempre em vista dos anos que faltavam no Jubileu; o credor insatisfeito poderia, portanto, comprar os serviços com a mesma limitação.
Por que limitações tão severas? Por causa da soberania ilimitada de Deus, como vimos, por um lado; por causa de um critério de profunda humanidade que anima toda a vida judaica em relação à legislação do antigo Oriente. Por outro lado, esse traço deriva da “vida com Deus”.
Um outro aspecto existia, muitas vezes subestimado, ou seja as limitações também vêm do fato histórico de que os judeus, desde o início, foram chamados e constituídos como um povo livre, em 12 agrupamentos ou tribos. Estes se reuniam periodicamente em torno do santuário. Cada tribo tem sua própria herança comunitária, os bens são sentidos como instrumentos para a vida do grupo. Cada um certamente dispõe do que é seu, mas não muito em comparação com os “outros”, nem muito pouco em comparação com os “outros”, ou seja, de forma justa, equitativa e caridosa.
A própria comunidade atribui bens a cada família, sempre no âmbito social geral e específico (cf. Lv.27:24) Tais bens podem sofrer alterações de acordo com as oscilações econômicas, mas periodicamente a igualdade original tinha que ser reconstituída e não podia haver oposição. De modo similar, o “escravo” deve retornar livre com seus ganhos, para sua família de origem.
O Jubileu é único no mundo antigo e na própria Bíblia. Sua originalidade, seu valor permanente. Sua venerável antiguidade também deve ser reconhecida, pois, somente a versão sacerdotal P dos textos coletam memórias antigas e o Jubileu pode remontar aos tempos arcaicos, quando as 12 tribos reivindicavam zelosamente sua livre associação e autonomia ao mesmo tempo, portanto antes da monarquia (século 11 a.C).
- Fato histórico?
Em particular, os profetas são os arautos invictos da justiça social. Eles viram muito bem a associação conatural que sempre reinou entre idolatria e injustiça social. O explorador é um idólatra – a idolatria é um explorador.
Mais uma vez, São Paulo chama pleonexia, o desejo impuro de enriquecer às custas do próximo, de “adoração de ídolos” (cf. Ef 4,19; 5,3; Colos 3,5; Rm 1, 29). De fato, os profetas e Paulo associarão para sempre três formas de imoralidade que são encontradas em um círculo genético recíproco: exploração, idolatria e luxúria. Em geral, as classes dominantes da sociedade podem se dar ao luxo dessas três formas de vida insalubre as custas dos “outros”, os pobres. É compreensível como o Jubileu pôde ter sido combatido e evitado não só na sua aplicação, mas também na sua profunda explicação teológica e social estes feitos, mesmo que utopicamente.
- “Ano Sabático”
No jubileu se aplicava, o «ano sabático» (cf. Êxodo 21, 2-6; 23, 10-11, ambos da tradição E = Elohista, do século 9 aC; Neemias 10:32; 1 Macabeus 6:49). Para todos os efeitos, faz parte do “Código da Aliança” (Êxodo 20:22 – 23:33 de E), e é retomado por Lv 25:1-7, precisamente como uma introdução ao Jubileu.
É o ano da libertação da terra, dos escravos e de todos os homens. Por um ano não existe trabalho, até os animais descansariam. Deus proverá o alimento das pessoas durante o 6º ano, que será de abundância, e também depois, no 7º, especialmente no 8º, o ano mais difícil de recuperação (cf. Lv 25,18-22).
No 7º ano, os escravos deveriam ser libertados (Êxodo 21:2-6, com encargos recíprocos). Os campos, que não eram cultivados, mas, poderiam produzir colheita para certos produtos e outros foram deixados para o livre gozo dos pobres (Êxodo 23:10-11). Foi uma “remissão”, shemittah, geral (cf. Dt 15:1-18; 31:10-11).
O ano sabático, com a sua declarada intenção social, foi também um ano religioso: de fato, marcou o início do ciclo sétimo da leitura da Palavra divina (Dt 31, 10-11), o grande instrumento que reuniu um povo disperso para fazer dele uma comunidade de vida e de culto no Senhor. Também aqui não se pode separar o significado litúrgico e social.
Em grande parte, o ano sabático teve o efeito que o Jubileu não pôde dar. Mas mesmo contra o ano sabático, o egoísmo teve que ser desencadeado, se a profecia tão freqüentemente tem que lutar a seu favor. Além disso, a “ordem social” poderia ser o outro grande pretexto: que nada perturbe a ordem estabelecida – mesmo que por acaso, então, como pode ser hoje, a ordem não poderia ser nada mais do que a desordem moral e social estabelecida por normas desprovidas de humanidade.
- A realidade do Jubileu
Olhemos agora esquematicamente para as realidades que compõem o Jubileu, uma realidade sempre válida.
- a) É liturgia: Para nós, cristãos, é difícil associar liturgia e justiça, aliás, a própria liturgia e a caridade. Na Bíblia não há uma liturgia que não seja também justiça para os outros, nem há justiça prestada aos outros que não seja uma liturgia.
Com efeito, só uma liturgia comunitária pode conferir um verdadeiro valor permanente à justiça e à caridade que os fiéis devem prestar aos «outros » e, por conseguinte, em última análise, « a si mesmos ». Da comunidade em ação, que é comunidade de oração e de oração, nascem obrigações constitutivas: a comunidade que ainda não fez justiça ao último dos seus membros, não é uma comunidade, não pode viver diante do Senhor a sua história de salvação, não pode apresentar-se ao mundo como a comunidade do Senhor – sim, apresentar-se-á a vós, mas da maneira grotesca que a história descreve e da qual os cristãos devem se conscientizar.
A obrigação de justiça que deriva da liturgia pode ser observada no Antigo Testamento: na grandiosa perícope de Dt 26; para o Antigo Testamento e repetidamente em São Paulo, por exemplo, em 1 Cor 11, 23-34, a propósito da assembleia eucarística, onde aqueles que, saciados como sempre, se apresentam sem ter feito justiça ao irmão faminto são condenados desde o início. Este discurso mereceria um tratamento muito longo, especialmente hoje, tempo privilegiado de reforma litúrgica e de reformas sociais.
Na Bíblia, fazer justiça ao irmão é adorar o Senhor, se os profetas (por exemplo Os 6, 6) e o próprio Senhor Jesus (Mt 9, 13; 12, 7) pediram primeiro a justiça-caridade para o irmão, e depois o culto ao Senhor. Não um sem o outro. O Jubileu, ano da remissão geral, é esta imensa liturgia de justiça e de amor, é como tal uma solenidade do Senhor, que pede aos seus fiéis que santifiquem o 50º ano com a remissão, o perdão e o amor comunitário (Lv 25, 10). O som do chifre, instrumento litúrgico, é o “sinal” do grande intercâmbio comunitário.
- b) É justiça-caridade: O Jubileu envolve, antes de tudo, todas as pessoas, chamando-as de volta, no sentido da comunidade. Ninguém será capaz de conceber desígnios malignos de exploração, pois o limite de tempo o lembrará realisticamente de suas possibilidades.
Deste modo, pode se iniciar uma comunhão entre todos os membros da aliança, que se sentirão inseridos numa verdadeira vida comum: comunhão, comunidade, comunicação da vida e dos bens. Reconhece-se em relação aos outros, e não como o centro da realidade e dos interesses impuros.
Esta justiça-caridade não ultrapassaria os limites irremediavelmente estreitos de uma comunidade dispersa e dispersiva, como poderia parecer o povo de Deus, se não fluísse abundantemente, sem limites, também para os estrangeiros.
O Antigo Testamento tem uma atitude humanitária singular, de excepcional abertura para com os gerim toshavim, os “estrangeiros residentes”, ou seja, aqueles que, por contingências históricas, foram arrancados da sua pátria e das suas famílias e se encontram a viver com Israel. Eles são privilegiados: os levitas e a eles pertencem, antes de qualquer outra categoria, as primícias da terra (Dt 26,11); e os dízimos trienais (Dt 26:12). Podem gozar de uma justiça distributiva equitativa e benéfica e, portanto, podem também participar na assembleia litúrgica do Povo de Deus, com plenos direitos e iguais direitos-deveres. Todas as formas de particularismo e possível supremacia racista desapareceram.
- Jubileu Divino
O Jubileu é um dom divino através de um preceito vinculativo e benéfico para todo o povo. Mas se o egoísmo a torna letra morta, o Senhor retoma a iniciativa e o relança incansavelmente. O “Terceiro Isaías” tem um texto esplêndido que vale a pena ler em tradução literal:
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para evangelizar os pobres que ele me enviou, para curar os quebrados de coração, proclamar liberdade aos prisioneiros e libertação aos acorrentados, para proclamar o ano da bondade do Senhor e o dia da retribuição ao nosso Deus, para consolar os que choram, para se revestir dos que choram por Sião, para dar-lhes ornamento em vez de cinza, óleo de exultação em vez de luto, um manto de louvor em vez de um espírito abatido, para que se diga deles, carvalhos de justiça, a plantação do Senhor, com a qual ele se adorna” (Is 61, 1-3).
O Messias, protagonista, é enviado «para anunciar o ano da benevolência do Senhor» a estes grupos humanos: os pobres, os sofredores, os prisioneiros de guerras «justas» e injustas, os presos por outras causas. Só Ele pode trazer consolação, paz, justiça: por isso recebeu sobre Si o dom permanente do Espírito de Deus, e o Espírito apodera-se dele e guia-o para a sua missão.
O sinal supremo da missão divina do Messias é certo – e deve ser reafirmado com vigor a cada vez – “evangelizar os pobres”. «Evangelizar» significa que, no ano do Jubileu perene, o Senhor está com os pobres, anuncia-lhes o seu amor infalível e entrega o Reino nas suas mãos, de modo que aqueles que querem pertencer ao Reino divino já na terra devem converter-se aos pobres, submeter-se ao seu serviço, prestar-lhes a homenagem que lhes é devida como o próprio Deus está presente (ler Mt 25,31-46, ou seja, nos pobres o Senhor proclama aos ímpios egoístas: “Tive fome e não me demos de comer). É muito difícil? Eis, pois, a ação do Espírito, mais necessária do que nunca.
No Novo Testamento Jesus, na sinagoga de Nazaré, a sua pátria, proclama e aplica a si mesmo o grande texto messiânico de Is 61, 1-3: o sinal da sua vinda é precisamente a «evangelização dos pobres», e Ele é um verdadeiro pobre. Reler Lucas 4, 14-21, especialmente 18-19. Jesus, em Nazaré, cita em particular o v. 6 sobre os oprimidos. Se a verdadeira religião para o Antigo Testamento é a justiça-caridade que procede do culto (cf. Ez 15, 9; Jó 22,6-7; 31, 17-20; Tobias 1, 16-17; 4, 15-16, etc.), no Novo Testamento em Jesus Senhor e nos Apóstolos a perspectiva aumenta de intensidade, até ao grito indignado do apóstolo Tiago: Tg 5, 1-6; 2, 1-13.
A perspectiva jubilar permanente é esta: Cristo inaugurou o verdadeiro Jubileu, o da remissão universal, da bondade, da justiça. Não uma bondade fraca, utópica e romântica, mas forte.
Por Pe. André Luiz Maia Teles